Vampetaço, Trollagem e o Trickster

Enquanto escrevia outro texto, que era sobre black metal, acabei por me deparar com uma série de acontecimentos curiosos, que se apresentaram à mim de uma forma que eu chamaria até de sincronística (sincronicidade para Jung é uma coincidência significativa, onde um acontecimento objetivo, material, intersecciona-se com um elemento psicológico. É um conceito bizarro, mas fez algum sentido nessa situação). Escrevo agora tentando expor esses acontecimentos e ideias que confluíram de maneira tão curiosa pra mim.

Eu estava meio empacado com o outro texto, mas pesquisando mais sobre o tema, revisando a história do Black Metal, e enquanto lia sobre a cena de BM norueguês, que basicamente moldou as bases do gênero como um todo, acabei por descobrir que uma dessas figuras, o Varg Vikernes, acabara de ser alvo de um Vampetaço(que consiste basicamente, no envio massivo e não-solicitado de fotos sensuais do ex-jogador de futebol, Vampeta, bem como de outros homens despidos), como retaliação por ter feito uma declaração de ódio ao Brasil, utilizando inclusive o termo untermenschen (cunhado pela ideologia nazista, para se referir à “povos inferiores”), ao se referir à nós, após a retaliação. Uma pagina de memes do facebook fez uma montagem resumindo o ocorrido (cuidado com o barulho), que no final das contas levou o Varg a trancar a sua conta no Twitter. Vale lembrar que ele já teve sua conta banida no youtube por também reproduzir discurso de ódio lá. Nem se faz necessário que eu diga o quão desprezível é esse sujeito.

Uma coisa que me chamou muita atenção nessa historia toda foi o Vampetaço, pois me parece uma forma muito brasileira de agir, que para mim se aproxima muito do meme “hue hue hue br”, no que diz respeito ao que poderíamos chamar de um “deboche brasileiro”, que foi explorado um pouco mais a fundo aqui, num artigo da área de comunicação/informação e que traça um paralelo interessante com Bakhtin para compreender melhor o fenômeno. No artigo a autora explora a historia desse meme, e de que forma ele representa aspectos carnavalescos da nossa cultura, que aparecem na nossa forma de se expressar, como é o caso tanto nos MMORPGs(Massively Multiplayer Online Role-Playing Game) de onde veio o meme, como também para o Vampetaço, que em si poderia ser considerado um meme, embora menos popular.

Mas e o que viria a ser um meme? Levanto a pergunta (e consequentemente a resposta), como meio de esclarecer o conceito, e evitar qualquer mal-entendido. O termo foi cunhado em 1976 por Richard Dawkins, e foi idealizado como análogo ao gene, e se refere à partículas culturais que são transmitidas e replicadas de forma “viral”, quase como que possuindo vida própria. Embora o conceito não tenha alcançado muito escopo no meio acadêmico, ele serviu de base para conceituar o meme de internet, que aqui nos interessa mais. O meme de internet seria uma forma mais restritta de meme, voltada mais para o campo humoristico, mas que se apresenta em uma multiplicidade de formas, como GIFs, imagens, vídeos, áudio ou mesmo puramente texto. No entanto, o meme de internet se beneficia da velocidade de sua transmissão, replicação e edição no meio digital, o que o torna ainda mais efetivo.

Voltando aos memes em questão, o que mais me chama atenção é que ao comparar as duas imagens, vemos o quão grotesca é a caracterização do brasileiro no Hue Hue, que faz sentido se lembrarmos que esse meme surgiu a partir de um olhar estrangeiro (consequentemente muito preconceituosa), com base numa série de comportamentos disruptivos por parte dos brasileiros em MMOs, justamente em servidores estrangeiros. Logo, o meme representa o brasileiro enquanto esse agente do caos, da desordem, que invade qualquer servidor ao seu alcance. Essas ações foram bem documentadas no artigo que eu mencionei. Apesar de reconhecer o caráter prejudicial e incômodo das ações desses jogadores, é preciso reconhecer que o que está por trás de um meme como esse não são apenas as ações concretas, mas também estereótipos e preconceitos que animalizam e diminuem o brasileiro.

Já o Vampeta, parece ter virado um meme gradualmente, dentro do meio futebolístico, uma vez que ele sempre se mostrou humorado e descontraído, contando historias engraçadas, nas suas entrevistas (inclusive historias de trollagens). Talvez o próprio ensaio nu, de 1999, já tenha começado a solidificar essa percepção sobre ele, já que na época não era comum que homens héteros posassem nus, sobretudo jogadores de futebol, grandes ícones de virilidade. A atitude de Vampeta foi muito pragmática, pois considerou em primeiro lugar o dinheiro que receberia (80 mil reais) pelo ensaio, que seria o triplo do que ganhava de salário no clube em que jogava, e para ele bastou isso. Anos depois, as fotos do ensaio começaram a ser usadas quase como uma arma, embora com um aspecto humorado. Os alvos dessa arma primariamente estão relacionados ao meio futebolístico, mas a não muito tempo, um deputado bolsonarista também tomou um Vampetaço, após pedir informações sobre os ANTIFA, em rede social. Da mesma forma como foi agora com o Varg, esse deputado recebeu incontáveis emails e mensagens com as famosas fotos do Vampeta.

Ressalto que, assim como o Hue Hue BR, aqui também é possível identificar uma serie de aspectos negativos que valem a pena ser pontuados. Foram inclusive coisas que me incomodaram e me fizeram pensar mais seriamente sobre o assunto. Afinal, por que o corpo de um negro virou uma arma, cujo maior efeito parece ser o de constranger seus alvos? As implicações racistas e objetificantes se fazem muito claras para mim. Afinal, não é de hoje nem de ontem que se “brinca” de mostrar ou aludir ào pênis como forma de provocação, sobretudo o pênis negro (vide o negão do zap). No entanto, o Vampetaço foi agora usado em resposta à figuras racistas e/ou fascista, complicando um pouco mais a situação, pois não se trata de apenas fazer piadas em relação a sexualidade ou masculinidade do alvo do Vampetaço, mas parece-me que é também uma forma de questionar, indiretamente as atitudes racistas do sujeito em questão. Há de se perguntar também quanto a efetividade e validade desse tipo de ação.

Talvez a mais importante semelhança que eu gostaria de destacar, é o aspecto da trollagem que se apresenta em ambos. Tanto o Vampeta quanto os brasileiros nos MMOs ganharam a fama de trolls. E por isso, é preciso fazer referência ao trollface, um meme já antigo, mas que por sua capacidade de encapsular toda uma serie de práticas de trollagem na internet, dificilmente perderá sua relevância.

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O Trollface

O troll é uma figura há muito conhecida na internet, e faz referencia às pessoas que intencionalmente, e prazerosamente provocam outros internautas, com o simples intuito de causar raiva, desconforto e talvez até sofrimento. Provavelmente você já encontrou algum e sabe do que estou falando. O que eu quero pontuar trazendo essa quase relíquia da internet é a semelhança quase arquetípica que se manifesta nesses três memes. A idéia de ler memes por uma lente arquetípica não é minha. Eu vi esse tipo de análise sendo feita no Meme Analysis, e parece ser uma forma interessante de estudar esse tipo de fenômeno tão próprio da internet. Acho que a idéia geral por trás dessa análise é que a internet, ao possibilitar um campo simbólico tão livre de restrições, onde o anonimato permite que as pessoas se vejam livres do julgamento alheio, acabou também por permitir que uma torrente de conteúdos inconscientes fossem escoados das mais variadas formas. Logo, seria inevitável que aspectos arquetípicos começassem a surgir, especialmente nos memes, pois são facilmente replicados e editados, adaptando-se às mais diferentes culturas e contextos.

Mas o que é um arquétipo? Da mesma forma que defini meme, definirei aqui o conceito de arquétipo, como idealizado por Jung. A idéia de arquétipo requer, primeiramente, a de inconsciente coletivo, pois este é composto primariamente pelos arquétipos. O inconsciente coletivo é resultado de nossa herança evolutiva, e contém estruturas elementares da nossa psique, que embora não possuam conteúdo próprio, são os moldes para as nossas formulações mitológicas, que compartilham universalmente dessa estrutura, resultando em formulações típicas que podem ser observadas nas mais diferentes culturas. (Jung explica direitinho em Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, parágrafos 87 até o 92)

O arquétipo que mais se faz presente nos memes que eu trouxe é o Trickster. Hermes/Mercúrio, Loki e Poltergeists são alguns dos exemplos citados por Paul Radin e Jung (The psychology of the trickster-figure, em Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, parágrafos 456-488), para ilustrar esse arquétipo. Vale ressaltar que o arquétipo é sempre maior do que suas expressões concretas, que são os mitos e os símbolos, por exemplo. O arquétipo só pode ser estudado a partir das suas manifestações, já que ele em si seria parte do inconsciente coletivo, que por definição é inacessível.

A figura do Trickster desempenha uma função de ponte entre o inconsciente e a consciência, pois simboliza os aspectos caóticos e animalescos do homem, sua desordem, sua inconsciência, que no entanto se expressa também com grande sagacidade e predileção por peças, travessuras e trapaças. Por mais que as ações em si possam parecer negativas, elas não raramente têm finalidades altruísticas, se pensarmos por exemplo em Ulisses, que ao enganar o ciclope, salvou sua tripulação. Esse aspecto altruísta também pode ser observado em Robin Hood, que deixa clara a faceta heróica do Trickster. Com isso, temos uma noção da ambiguidade desse arquétipo, bem como sua complexidade. Ressalto também que não é incomum que o Trickster seja colocado numa posição de bode expiatório, o culpado por todos os males, como é o caso do Poltergeist e de forma semelhante, o Saci.

Uma outra forma de visualizar a atuação desse arquétipo é através do Carnaval, bem como todas as suas encarnações anteriores, até as Bacantes, onde já se podia observar esse tipo de festa ou celebração que tem como principio a inversão, suspenção e/ou modificação das normas morais. Nem mesmo o cristianismo conseguiu extinguir esse tipo de prática. O carnaval é caracterizado justamente por uma celebração dos impulsos, da ambiguidade, das inversões e contradições, que são os mesmo domínios do trickster.

Eu diria que os memes têm a sua maior fraqueza no fato de não darem conta de toda essa complexidade do arquétipo, acabando por ressaltar alguns aspectos em detrimento de outros. Tanto o Hue Hue br quanto o trollface focam nos aspectos disruptivos, caóticos e destrutivos, deixando de lado o altruísmo, a criatividade e heroísmo que também estão presentes nesse arquétipo.

Mas e o Vampetaço? Bem, a interpretação que me ocorreu foi a de que tudo começou com o próprio Vampeta, que já incorporava diversas características de Trickster na sua forma de agir(piadas, as vezes maldosas, bem como diversos atos de caridade são alguns exemplos). Com isso, foi possível a formulação de memes que incorporassem alguns desses aspectos. No caso do vampetaço, a trollagem é protagonizada por quem envia as fotos, e não necessariamente o Vampeta (ou sua imagem, no caso), como ocorreria normalmente, onde o meme contém uma historia ou representação de trollagem.

Eu também não poderia deixar de falar mais sobre o Saci, que é talvez o Trickster mais brasileiro que existe, mas que no entanto, parece-me também sofrer de problemas similares aos, se considerarmos o fato de que o Saci é normalmente retratado de forma negativa, o que provavelmente tem causas racistas por trás. Além disso, o Saci foi popularizado por Monteiro Lobato, que defendeu em sua vida diversos ideais racistas. Eu diria que a partir de Lobato, o lugar de bode expiatório do Saci foi ainda mais enraizado, aliado à um processo de infantilização e simplificação da figura. Com um pouco mais de pesquisa, acabei descobrindo que o Saci Pererê tem origem indígena, e que era um defensor da floresta, pregando peças e confundindo invasores. No entanto, a sua origem não é totalmente conhecida, visto que existem outras figuras míticas partindo de Portugal e dos povos africanos trazidos para cá, que também os aproximam do saci, e podem ter contribuído nessa amálgama cultural. Parece-me que ao longo do processo colonizador, o Saci foi apropriado pelos brancos, que ao enegrecerem a figura, podem ter tentado (e eu diria que conseguiram) domá-lo, tal como um escravo.

E isso condiz muito com o racismo à brasileira, também chamado de racismo cordial, que se dá a partir da idéia (falsa) de que vivemos em uma democracia racial, e portanto somos todos iguais. A partir disso, a maior parte dos brasileiros reconhece o racismo enquanto algo negativo, mas ao mesmo tempo tem dificuldade em enxergá-lo em si mesmo, criando um belo paradoxo, onde todos a minha volta são racistas, menos eu mesmo. As manifestações cordiais de racismo se dão por meio de piadas, brincadeiras e ditos populares, o que tende a dificultar o reconhecimento dessas práticas enquanto racistas.

É justamente por ter tom de brincadeira que os memes podem se tornar mais uma forma de reprodução desse racismo cordial. Trago para finalizar esse texto, mais um meme que também pode ser considerado um trickster, e que ficou conhecido justamente por ter sido utilizado pelos usuários do 4-chan, em apoio à Trump, e como forma de chocar e fazer “piadas” racistas, nazistas e das formas mais ofensivas possíveis. Estou falando do Pepe. É interessante atentar também para o fato de que ele é um sapo, que são animais ambíguos por natureza, transitando entre água e terra. Essa dupla natureza é própria de um trickster.

Nesses exemplos, vemos a multiplicidade de expressões que são alcançadas com um mínimo de edição. As eleições para presidente dos EUA em 2016 impulsionaram bastante a criação e disseminação de memes com o pepe, em apoio à Trump. Toda a situação é bem interessante, e mostra como os memes podem influenciar eventos da dimensão de uma eleição. Recomendo o filme Feels Good Man, que explora todo o processo de criação do Pepe, que era apenas um personagem de uma HQ, até a transformação em símbolo da alt-right.

Espero que com isso eu tenha conseguido lançar luz sobre o assunto, e mostrado o poder de influência presente nos memes, ainda mais quando aliados à aspectos arquetípicos, o que eu acredito que contribua no processo de transmissão e criação dos memes, de formas que podem nos passar despercebidas.

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